sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Polícias e cidadãos

Oh, lecas, tu queres lá ver que...


Nisto dos polícias contra os cidadãos verifica-se aquilo que Kierkegaard dizia: o mundo julga o cristianismo como uma bebedeira, o cristianismo julga o mundo como uma bebedeira. 
Falar em polícias e em cidadãos corresponde a um modo de ver as coisas. Outro modo é falar de cidadãos em geral - que também os polícias são (mas não enquanto polícias, relembra-nos o ponto de vista anterior). Então o que
 há de verdade em cada uma destas palavras, "polícia" e "cidadão"? Porque não se tratam só de palavras.
Os polícias foram apedrejados, mas enquanto cidadãos sofrem com a austeridade tanto quanto (talvez não "tanto", porque de facto têm emprego) o resto, tanto quanto os que estão à sua frente.
Enquanto autoridade não se deve apedrejar a polícia - rejeitar a autoridade seria o quê? Enquanto há um cidadão por debaixo do polícia também não deve ser apedrejado.
Atingir o polícia, não é atingir os responsáveis. O polícia só cumpre ordens.
Enquanto o polícia defende um estado de coisas injusto, vencê-lo é necessário para atingir o Estado. Vencer este estado de coisas justifica apedrejar quem o defende.
O polícia é também cidadão: quando bate esquece-se de quem era antes de entrar ao serviço; quando bate já não é uma consciência. Quando bate ele é um instrumento. Mas isso não o desresponsabiliza (ele bem pode usar essa desculpa para si mesmo), mas perante nós, ele DEVE TER CONSCIÊNCIA. Se o polícia bate quando o cidadão está a exigir justiça, a justiça que o próprio cidadão que também é polícia reconhece - nesse momento o polícia é uma máscara, o cidadão que também é polícia é um hipócrita.
Se a luta é justa, então o cidadão que também é polícia não se deve apresentar ao serviço. Tudo o que decorrer de ele se apresentar ao serviço é já uma perversão da consciência.

E há ainda uma outra forma de ver as coisas: há polícias e há humanos.
Enquanto há polícias têm o dever de manter a ordem, o homem sofre violência pelo seu próprio bem, em nome da sua segurança. O polícia é o braço seguro do Estado que confina o homem protegendo-o contra a natureza, contra os seus iguais, e mesmo contra si mesmo.
Mas o homem é humano e, como tal, ser aprisionado não lhe retira a sua natureza. A polícia é o homem que exerce sobre os homens a autoridade do Estado em forma de força. O polícia é a força do Estado, e neste sentido, ele bate quando o Estado bate. É o Estado que age, em nome dos homens.
O homem que é polícia é também humano. Não gosta de apanhar. Chateia-se se lhe atiram pedras. Mas é o Estado que legitima, que justifica a defesa da autoridade agredida. A agressão à autoridade é crime.
Mas o homem que é polícia tem o ser polícia como uma possibilidade. Quando ele simplesmente cumpre a autoridade que é a do Estado, ele despiu-se de si mesmo enquanto homem. Não há autenticidade nisto, porque o humano é com possibilidades. Não bater é tão possível como bater. Cumprir ordens é tão possível como não as cumprir. O homem que é humano é anterior ao homem que é polícia, porque aquele que é polícia também é humano. E ao contrário daquilo que ele julga quando diz "Só cumpri ordens.", não deixou de ser humano quando vestiu a farda.
Deve um polícia ser julgado por crimes cometidos que foram ordenados por um superior? Deve. Mas a questão nem é essa:

O homem que é polícia também tem uma consciência, porque é sempre humano - e, enquanto é sempre sendo humano sabe por isso o que é correcto, se o perguntar a si mesmo sem abafar a resposta com máscaras (ex. polícia, cidadão, homem). Bater ou não bater? Esta pergunta já está obscurecida, porque o cidadão olha para o polícia, o polícia olha para o cidadão, e nem o polícia percebe que podia estar do outro lado, nem o cidadão percebe que podia ser polícia. Nenhum dos dois percebe que é humano antes de mais nada. Pode-se perguntar o que diz a lei sobre o que se passou. Pode-se perguntar o que diz o Governo. Pode-se perguntar o que diz o agredido. Pode-se perguntar o que dizem os que agrediram. E parece que todos foram, de um lado e do outro, agredidos.

Provavelmente ambos os lados não estão completamente certos, e é possível que não haja um meio termo mais certo - porque ocorra aqui um obscurecimento anterior daquilo que está em causa. É possível que os polícias estejam certos (em nome de serem polícias) e errados (em nome de representarem a justiça dos cidadãos), e os cidadãos certos (em nome de serem violentados) e errados (em nome de estarem sujeitos à lei), porque talvez ambos estejam a ver mal.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A espalhafatosa estupidez dos políticos

Oh, lecas, tu queres lá ver que...


Políticos e governantes e comentadores pensam, na sua imensa parvoíce, que os portugueses estão muito chateados porque os ministros foram inábeis a escolher o nome do imposto...

Pensam que os portugueses foram para a rua porque nutrem um ódio particular especificamente dirigido às três letras, TSU.

Mas estão equivocados, como acontece regularmente a quem é parvo.


Os comentadores e políticos, nos meios de comunicação, parecem já ter assumido que a redução da TSU para as empresas vai ser preservada, e que precisamos de encontrar outra forma de os trabalhadores pagarem isso... e isto é que é mesmo irritante...


O que irrita o Povo na carga fiscal não é o nome dos impostos.


Pelo que alguns dizem na televisão parece que, se amanhã o governo voltar atrás no aumento de 7% da TSU para trabalhadores, os portugueses ficarão muito contentes e aos pulinhos de alegria dirão uns para os outros: "ainda bem que desistiram daquele nome inestético, é que IRS é muito mais giro".

Mas estão equivocados, como acontece regularmente a quem é parvo.

O que irrita os portugueses é um lote assaz extenso de estupidez e parvoíce que tem jorrado abundantemente das cabeças obtusas dos ministros.

Não é verdade que o que estão a fazer seja o caminho único segundo o memorando da Troika, ou segundo as obrigações internacionais.

Não é verdade que a mexida anuncida na TSU seja uma medida necessária.


Ora, os ganhos para o Estado vão ser muito limitados porque, apesar de tirar um ordenado a toda a gente pela via da TSU, depois devolve a maior parte desse dinheiro aos patrões (podemos chamar-lhes empresários, ou capitalistas, mais uma vez não é o nome que interessa).

Os impactos práticos no emprego serão muito, muito, muito reduzidos, porque o mercado está a contrair, não a expandir, e as pessoas terão ainda menos dinheiro para gastar, logo, ninguém vai precisar de aumentar o número de trabalhadores.

Os impactos na exportação poderão ter a vantagem de nos fazer ter uma balança comercial mais positiva, mas os resultados positivos são residuais - ou seja, não é por aí (isoladamente) que se lança a economia.

Provavelmente, as medidas anunciadas sobre a TSU conseguirão apenas consolidar os monopólios onde já existem, ou onde uma ou duas grandes empresas poderão usar a poupança na TSU para eliminarem a concorrência.


Mas o que irrita mais é que os portugueses ficam sem dinheiro, sem dois ordenados no público e sem um no privado.

Irrita que o aumento da TSU seja mais acentuado para quem ganha 500€ do que para quem ganha 5000€.

Irrita que este aumento contributivo seja utilizado para baixar as contribuições dos patrões.

Irrita que as medidas a aplicar aos grandes capitais, às grandes riquezas, aos ricos em geral, prevejam aumentos entre 1% aqui, e 2% ali, enquanto os trabalhadores pagam mais 7%.


Depois irrita que comentadores e economistas se deixem levar pelo engodo. É que é fácil arranjar alternativas.

Primeiro, antes de mais, NÃO REDUZIR A TSU AOS PATRÕES, com isso poderemos NÃO CORTAR UM DOS SUBSÍDIOS AOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS;

Pronto. Aqui estamos na circunstância em que basta um subsídio a todos, privados e públicos. Como fazê-lo?

NÃO POR VIA DA TSU, pois é cega.

Poder-se-ia operar um aumento efectivo do IRS na casa dos 7%.


Mas, o correcto, se os nossos governantes não fossem como são, seria reduzir nos gastos intermédios do Estado, nos consumos excessivos dos dirigentes e dos políticos, com carros de alta cilindrada, codornizes e alta cozinha no Parlamento, PPP's...

Se se fizessem essas poupanças seria preciso aumentar bem menos do que 7% nos impostos.


Mas os comentadores e políticos, nos meios de comunicação, parecem já assumir que a redução da TSU para os patrões vai continuar, e que precisamos de encontrar outra forma de os trabalhadores pagarem isso... e isto é que é mesmo irritante...



quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A austeridade

Oh, lecas, tu queres lá ver que...

A ideia é que nós fiquemos tão pobres que, por muito pouco que exportemos isso seja mais do que aquilo que importamos


Medidas de austeridade, ver aqui...


A ideia do Governo é empobrecer-nos a todos. O empobrecimento provocará, segundo as ideias iluminadas de quem nos governa, uma balança comercial positiva.

Se empobrecemos, compramos menos. Se compramos menos, importamos menos.

Os governantes tentam, então, que as exportações não sofram, ou pelo menos que não sofram tanto quanto as importações.

Entretanto, o empobrecimento contrai a procura interna ao reduzir o poder de compra. Assim, os empresários tendem a procurar mercados externos onde lançar os seus produtos.

Com a redução das contribuições dos empresários, via Taxa Social Única, os empresários que exportam saem beneficiados, pois conseguem aumentar a produtividade e como se dirigem a mercados externos não são tão afectados pela contracção da procura interna.

Desta forma, o Governo consegue, ou pretende conseguir, uma Balança Comercial positiva. Isto é, consegue que saia menos dinheiro de Portugal do que aquele que entra. Ao entrar mais dinheiro em Portugal, e com o mercado interno contraído sob o peso das contribuições fiscais, o Estado tende a diminuir a dívida pública, pois os capitais em circulação serão captados pela carga fiscal exaustiva.

Este modelo tem várias falhas conceptuais. A primeira é esquecer-se que estamos a lidar com pessoas e não com números. Ou seja, quem fica pobre são pessoas, são seres humanos que passam a encontrar-se em condições cada vez mais deficitárias.

A segunda é que não se sabe realmente qual será o impacto da redução da Taxa Social Única. O executivo espera que a contracção do mercado interno estanque a saída de moeda do país porque as importações decrescem. Espera, ao mesmo tempo, que isso não estrangule as empresas porque pensa que estas se sairão bem em mercados externos sem necessitarem do mercado interno. A ideia é que nós fiquemos tão pobres que, por muito pouco que exportemos isso seja mais do que aquilo que importamos. Contudo, nada disto é certo. Porque os mercados externos são, na maior parte dos casos, mais competitivos do que o português. Porque lá fora também há contracção dos mercados. Porque não se tem a certeza de que o crescimento ou manutenção das exportações será alguma vez suficiente para reconduzir as finanças públicas a uma situação sustentável se a contracção do mercado interno continuar a ter efeitos perversos na receita fiscal. Portanto, estão a fazer correr um modelo experimental, do qual não se sabe muito bem o que resultará de positivo, mas que se sabe ter impactos imediatos altamente gravosos no nível de vida dos cidadãos.

A terceira falha é que as medidas quebram claramente o consenso e a equidade na sociedade, de tal modo que Portugal poderá ver-se perante a situação de ver cair o contrato social estabelecido. Ou seja, estas medidas poderão levar à revolta. Contudo, como o nosso país é brando e pacífico o mais provável é simplesmente quebrar a motivação e roubar-nos a esperança, com efeitos prejudiciais ao nível da produtividade. Aliás, desde que austeridade começou os indicadores de competitividade têm baixado, ao contrário do que seria esperado. O Governo esperava que, ao baixar as rendas do trabalho, ou seja, os ordenados, isso provocasse um aumento da produtividade (produzindo mais, ou o mesmo, mas a um custo inferior, visto que se paga menos ao trabalhador). Mas a verdade é que Portugal caiu 4 lugares na lista de países mais competitivos, e Portugal já não estava bem colocado antes disso... Ver aqui ou notícia aqui.

Na minha opinião é aceitável o risco da queda do Governo. E se, depois das declarações que o Presidente da República tem proferido o Governo teima neste caminho, está em cima da mesa a dissolução da Assembleia da República. Mas o caminho DEVERIA ser percorrido pelos cidadãos, na rua. A voz do Povo deve ser usada pelo Povo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Vontade e Resistência

Oh, lecas, tu queres lá ver que...



Nestas alturas aparece quem pretenda supostamente citar Darwin, provavelmente sem o ter lido.


Primeiro: dizem-nos que é uma questão de sobrevivência, que é a lei da sobrevivência dos mais fortes. Mas com isto supõem que está dado e adquirido o que seja isso de "mais fortes". No fundo acreditam saber o que é a força e no que consiste a sua aplicação correcta. Não se apercebem que isso não é claro. À primeira vista parece que o Tiranossauro Rex é "mais forte" que a "galinha". Mas seria preciso considerar o facto de hoje haver galinhas, e não haver tiranossauros. Na verdade, os dinossauros devieram galinhas para conseguirem sobreviver.

Segundo: então corrigem e dizem que é uma questão de sobrevivência, que é a lei da sobrevivência dos mais aptos. Mas com isto supõe que está dado e adquirido que ser "apto" significa "estar adaptado". Presumem as espécies se extinguem porque não estão adaptadas. Mas claro que isso é um equívoco: na verdade, a maior parte das espécies que se extinguem naturalmente, extinguem-se porque se adaptaram demasiado a um meio. Ou seja, dizer que temos que nos adaptar às circunstâncias vigentes para sobreviver é erróneo: foi a adaptação às circunstâncias vigentes que extinguiu as espécies que já cá não estão. A especialização é um problema, porque as circunstâncias mudam.

Esquece-se muitas vezes que o que fez dos seres humanos um tipo particular de estar no mundo não foi tanto a sua capacidade para se adaptar, mas a sua inadaptação originária. Qualquer livro de psicologia diz esta verdade - chamam-lhe prematuridade humana, neotenia, inacabamento, etc. O que faz a diferença específica humana não é, repito: não é o seu estado avançado em relação às restantes espécies animais. Mas sim: o seu retardamento. A nossa primazia, se há em nós uma primazia, não está em confundirmo-nos com o mundo, mas na nossa heterogeneidade relativamente ao mundo e à própria vida. O que nos fez fortes, se somos fortes, não foi a nossa capacidade de nos adaptarmos mas sim, repito: mas sim a nossa capacidade de adaptarmos o mundo, de mudarmos o mundo.

O que nos caracteriza não é a capacidade de cedermos às circunstâncias, mas de termos uma vontade, de resistirmos nessa vontade, contra as circunstâncias, apesar delas...

Quando o humano se tornar um ser apenas de adaptação, talvez já não valha a pena que sobreviva, porque já deixou de ser humano. Se se extinguir o que ficou da sua ruina, outro animal qualquer tomará o seu lugar.