terça-feira, 16 de julho de 2013

Necessidade: o que é preciso?

Oh, lecas, tu queres lá ver que há necessidades...




A ideia de que a salvação está em fazer o "necessário" é parva, pelo menos, por dois motivos.

1º. Saber o que é, de facto, preciso, "necessário", requerido - numa palavra, saber o que se há-de fazer é, justamente, o problema - não basta pôr-se uma pessoa a gritar que é preciso fazer o que é preciso, é também "preciso" saber o que é preciso, e neste âmbito parece que não se tem sido capaz de perceber o que era preciso, pois tem-se feito o que se tem dito ser preciso e isso tem-se revelado inútil (e o facto de haver algumas pessoas que acham que tem sido útil isso mostra apenas o que essas pessoas acham ser útil e que, invariavelmente, tem que ver com apresentar certos indicadores numéricos e gráficos às pessoas que passam fome ou estão em circunstâncias aflitivas para lhes dizer que as suas aflições são, afinal, pura ilusão);

2º. O problema parece residir precisamente no facto de se andar a fazer o "necessário" e ninguém mais pensar no que deve ser feito. Ou melhor, toma-se o necessário pelo que se tem de fazer: como se o que se deve fazer fosse uma necessidade, mas isso apenas mostra uma imensa ignorância acerca da natureza humana, pois nada na história nos mostra que aquilo que é necessário em cada circunstância se tenha revelado aquilo que se deveria ter feito: embora, não raras vezes, a história nos tenha mostrado que o necessário era precisamente o que não se deveria fazer. Claro que logo se pensa que contra o necessário nem os deuses podem nada, como já o diziam os Antigos. Mas, mais uma vez, é "útil" recorrermos à história, a qual nos mostra que, tão frequentemente como a chuva no Inverno, aquilo que se tinha por necessário se veio a revelar a maior estupidez. E, assim, caímos, novamente, no problema número um.

Ora, pode-se ser muito criativo e crítico relativamente a soluções para um determinado problema. Pode-se ser capaz de identificar as falhas, as fragilidades, os perigos desta ou daquela hipótese - sem ter de a percorrer para cair no abismo. Assim, há pessoas particularmente despertas para este tipo de vícios formais nas teorias - são pessoas raras, que me surpreendem sempre pela sua argúcia, e que eu gosto de ouvir e tomar nota. Essas pessoas são muito importantes na vida política, económica, etc.

Há, depois, outro tipo de pessoas. Essas pessoas, ainda mais estranhas do que as anteriores, são capazes de ver contra tudo o que está dado a ver. Nós, pessoas comuns, olhamos para os calhaus e vemos calhaus. Mas essas pessoas não. Essas pessoas são capazes de perceber que aquele problema -com o qual nos ocupamos, e relativamente ao qual os criativos e críticos (descritos no tópico anterior) são argutos e exímios em análise - afinal não existe senão em razão de um vício do olhar. Estas estranhas pessoas dizem-nos na cara que aquilo que está mesmo à nossa frente - por exemplo, o tal calhau - pode muito bem não ser o que parece e até pode nem existir: e dizem-nos isto mesmo que lhes demos com o calhau na carola. Este tipo de pessoas é ainda mais raro do que o anterior. A sua crítica é ainda mais "especiosa" e não se lhes consegue perceber o raciocínio enquanto se come tremoços e bebe uma bejeca. Têm a curiosa particularidade de serem pessoas sem qualquer relevância política e social, raramente ocupam cargos importantes. Passam absolutamente despercebidos e são estranhamente incapazes de escrever um artigo para um jornal - porque não são capazes de dizer nada sem terem de explicar uma carrada de dificuldades que nunca nos haviam passado pela cabeça. Quantas pessoas destas encontramos nós? Para mim é sempre uma surpresa ouvir alguém, ou ler alguém que faça este género de crítica. Não curiosamente, têm por "hábito" - hábito muito estranho - serem lidos e comentados apenas depois de mortos (aqueles que chegam a escrever alguma coisa, porque aparentemente estes estranhos seres não são atraídos pela escrita - nem pelo facebook, imagine-se). Pra este hábito de passar despercebido talvez contribua a noção de que, seja o que for que digam, isso será deturpado, transformado e defecado noutra coisa qualquer, de tal modo que talvez não se sintam atraídos por contribuir para o ruído de fundo. Uma pessoa encontra três ou quatro destas estranhas criaturas na sua vida (provavelmente porque também nos falta a capacidade para reconhecer um génio se ele não tiver trinta microfones à frente, um contrato milionário ou o nome antecedido por meia dúzia de títulos).

Eu devo dizer que não tenho nenhuma das habilidades ditas anteriormente -mas sinto-me fascinado por essas mesmas habilidades. E tomo-as em consideração. Na verdade, penso que essas pessoas devem ser levadas a sério - mesmo que isso tenha tendência para não acontecer.

Isto tudo para dizer o quê? Bem, para dizer uma coisa muito "simples": estamos na estranha circunstância em que nos tornámos escravos e deitamo-nos a apontar toda uma catrefada de algozes, quando afinal a nossa situação aflitiva talvez tenha como origem apenas a nossa própria fronha bovina. O problema parece ser que não sabemos identificar o que seja esta condição de escravatura, pois também não sabemos quando foi que nos tornámos escravos, ou se afinal sempre fomos escravos - de tal modo que talvez a nossa experiência, essa mesma experiência em que temos de confiar todos os dias e que é vital, seja justamente o problema: pode acontecer que estejamos de tal modo encarneirados numa experiência de carneiros, num hábito bobino, que todas as referências que procuramos para nos libertarmos sejam referências adquiridas à medida do carneiro e do bezerro.

Ora, então, que é que se passa connosco, que regime é o que temos, qual é o nosso papel, para que serve um regime, para que servem os mercados, o que são as pessoas, o que é uma pessoa? Por que temos de fazer o que os mercados dizem, o que a Alemanha diz? Se nos mandam enforcar, temos de nos enforcar? Se não nos deixam viver senão enforcando-nos por que raio devemos enforcar-nos?

Todas estas perguntas são, evidentemente, parvas, porque já se sabe que há um problema e há que arranjar uma solução, e há um regime, e os partidos são o que são, se não queremos o passos temos de querer o seguro, e se um e outro são reles, a ditadura não seria melhor, e precisamos de dinheiro, porque sem dinheiro passamos fome, e para o Estado ter dinheiro, temos de passar fome, e acabamos por ir para o matadouro como as ovelhas com as nossas boas razões, porque temos por certo que ir para o matadouro é necessário para o problema em que estamos.

Resumindo: também não é sair para a rua que nos salvará por si só. E ficar parado também não. Esses comportamentos, por si só, são neutros. Pode-se sair à rua, como se fez no Egipto, e metermo-nos numa situação igual ou pior. Há qualquer coisa que se deve aprender com todos esses povos - estranhos para o português - que marcham contra exércitos e polícias e fazem cair regimes à custa do sangue, ou que, como os brasileiros, forçam o governo a fazer o que deveria ter feito sem que o obrigassem. Há uma lição que é esta: vale a pena sair do sofá. Mas também há uma lição a aprender com o Egipto: é preciso mais, é preciso muito mais do que fazer cair um Governo ou um Regime, é preciso muito mais do que votar. É preciso consciência. E a consciência aqui não é a simples notificação das coisas: pensar numa frase, por exemplo, "é preciso que o governo se vá embora", não garante que saibamos o que isso significa - sobretudo, o que isso significa em relação AO NOSSO PAPEL. Porque toda a gente parece convencida que basta mandar embora o Passos e esperar que a situação se resolva sem a gente ter de fazer nada em particular. Mas, justamente por isso, muito provavelmente, as coisas vão continuar simplesmente na mesma.

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