quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O nosso modelo económico: um cadáver adiado

Oh, lecas, tu queres lá ver que...

Já toda a gente percebeu que o sistema económico vigente apresenta graves falhas. Na verdade, já falhou.

Como se sabe que um sistema falhou? Quando ele se torna paradoxal. Ao longo da história vimos isso acontecer com sistemas e paradigmas filosóficos, científicos, políticos e sociais, económicos e mercantis, etc. A crise dos sistemas é sempre igual: a proposta explicativa do sistema leva a modelos de previsão paradoxais. Ou seja, torna-se um absurdo. O sistema cai e outro surge...

No nosso caso temos o mesmo: no sistema em que vivemos os entendidos prevêem determinadas hipóteses como solução para a situação problemática em que vivemos. Então, para alcançar as condições que reconhecem como necessárias para resolver o problema, sugerem determinadas actuações. No entanto, essas actuações, ao serem implementadas, provocam elas próprias danos na situação já de si problemática. Além disso, as condições previsivelmente boas que se desejam, têm por si mesmas efeitos colaterais na conjuntura, provocando a sua degradação.

Resumindo: a cura prejudica ainda mais o doente. Cada economista prevê que uma cura seja melhor que a outra prevista pelo seu colega. Mas todos os economistas sabem que todas as soluções que têm sido propostas acarretam graves consequências e que, potencialmente, irão agravar mais a situação em que estamos. Mas cada um acredita que, se a sua ideia for aplicada irá ocorrer um milagre que fará com que os resultados positivos sejam superiores aos negativos.

Ora, isto é um sistema em crise: quando os modelos explicativos que propõem resultam em dilemas paradoxais. Dilemas em que, qualquer que seja a acção tomada, o resultado será sempre contraditório. Qualquer das medidas que este sistema consegue prever são medidas que, para alcançar 2 ou 3 condições boas, provoca 4 ou 5 más.

Alguns economistas acreditam que devemos de facto piorar para poder melhorar. Acreditam, tal como os barbeiros antigos, que a fraqueza induzida no corpo pela sangria criará as condições necessárias à convalescença.

Na verdade, os nossos economistas, e os barbeiros (por vezes), até estão certos: criam-se as condições necessárias. Mas não as suficientes - e o problema está aqui.

Ora, temos duas hipóteses para sair da crise em que estamos sem mudar o sistema: 1ª - apostar na austeridade; 2ª apostar no investimento.

1ª: Com a austeridade criam-se condições necessárias para o crescimento, mas não as suficientes. Mesmo que se consiga reduzir o défice e a dívida para níveis razoáveis (o que é duvidoso, dados os efeitos recessivos das medidas), a economia real ficará tão mal, a situação ficará tão depauperada que, para voltar a relançar o país o Estado vai ter que se endividar outra vez e aumentar exponencialmente o défice.

2ª: Com um investimento suave e a manutenção de medidas brandas de contenção, os mercados e a conjuntura política europeia e mundial iriam apertar-nos tanto que teríamos que (depois de expulsos do Euro) cunhar moeda a rodes. Enfim, teríamos dinheiro, é verdade, mas ele nenhum ou pouco valor teria. Na verdade, não temos espaço de manobra para investir quando não temos dinheiro.

Em ambas as hipóteses se criam condições sem as quais não há crescimento, mas em nenhuma se criam as condições suficientes. É que, para criar as condições suficientes seria necessário aplicar ambas as hipóteses, o que é praticamente muito difícil (estou a tentar evitar a palavra impossível). Não é fácil poupar e gastar, por mais voltas teóricas e mudanças de definições ou escolha de palavras que se façam. Para poupar tenho de não gastar. Para gastar não poupo. É simples. Se gasto e poupo, vai dar ao mesmo (se poupo dez e gasto dez fico na mesma situação em que estava antes).

Nestas circunstâncias passamos a vida a discutir quem é que deve suportar os esforços, se mais os ricos ou mais os pobres. O problema foi escamoteado e poucos o têm referido: o problema não é saber quem deve pagar o quê, pois o problema está a montante: no sistema e nos seus modelos.

Mas os poucos, muito poucos, que têm feito referência a isto (à necessidade de discutir um novo sistema com novos modelos), têm-no feito como se as alterações necessárias e suficientes pudessem ser ditadas pela lógica deste sistema actual. Isso é errado: o sistema deve ser mudado, logo, as alterações a fazer não devem seguir a sua lógica. Se eu digo: "vamos ter que mudar o sistema, pois mostrou-se necessário terminar com o estado social" (saúde, educação, segurança social públicas) - estou ainda dentro do sistema.
Outros, desses poucos que referem a necessidade de mudar o sistema, pensam ser possível progredir voltando a trás. O que é parvo. Tentar melhorar este sistema utilizando matrizes de outros sistemas velhos que eles próprios falharam é parvo. Os médicos quando fazem um transplante de coração não vão colocar no doente um coração que, ele próprio, já teve um AVC. Seria muito parvo. Da mesma forma é parvo utilizar sentenças de modelos que faliram para converter o sistema em que estamos: estar-se-ia a converter um sistema moribundo noutro já morto.

Resumindo: precisamos de um novo sistema com novos modelos explicativos da realidade económica-social-política. Um mundo novo precisa de um novo paradigma. Mas este paradigma deve deixar de lado os preconceitos do velho. Tal como Einstein teve de se abstrair das teorias de Newton, tal como Galileu e Copérnico tiveram de se abstrair das teorias de Ptolomeu.

Mas imagine-se o espanto das pessoas quando alguém aparece a dizer que afinal a Terra não está parada! Imagine-se o espanto das pessoas quando alguém afirma que o espaço e o tempo são realidades que interagem com a matéria (e não simplesmente ocupadas por ela), e que a matéria e a energia são a mesma coisa! Aos contemporâneos de Galileu, Copérnico e Einstein pareceram simplesmente loucos. Mas é a loucura que faz pular e avançar o mundo.


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Kadhafi torturado, sodomizado e morto...

Oh, lecas, tu queres lá ver que...

Este tipo de acontecimentos tornou-se tão comum no nosso tempo. E a questão permanece: a dignidade humana é ou não inalienável?

Se a dignidade humana é inalienável, então há uma espécie de dignidade em cada ser humano que torna este tipo de acontecimentos indignos.

Porquê usar de um tal nível de violência contra um ser humano que se encontra obviamente indefeso. Independentemente de tudo o que ele possa ter feito, do poder que possa ter usado indiscriminadamente no passado - quando foi apanhado encontrava-se indefeso, sem qualquer poder, nas mãos dos seus captores. Não se justifica a violência num caso destes. A violência, a ser exercida, deve ser justificada - nunca mera violência gratuita.

Um ser humano nunca deveria ser tratado assim. E que existam seres humanos que possam pensar que praticar violência em situações destas é justificável - que existam seres humanos que possam eles próprios praticar tal espécie de violência, não me espanta. Não me admiro. Parece-me natural. Parece-me normal, demasiado normal que o ser humano continue a ser um animal.

Não penso que estes actos atrozes contradigam a natureza humana. Penso que o ser humano pode fazer melhor isso. Mas o sangue que lhe corre nas veias é, obviamente, um sangue vingativo, sedento de violência.

Contudo, o facto de naturalmente tendermos para a violência não nos deve confundir os espíritos: o homem é claramente capaz de ser melhor que isso. O humano é capaz de lutar contra as suas tendências mais primárias. Não se trata de subverter uma natureza humana vingativa. Trata-se de superar algumas das nossas tendências em prol de outras tendências que nós, enquanto seres humanos dotados de juízo e entendimento, consideramos superiores.

O facto de existir uma tendência natural para o acto sexual nunca impediu alguns seres humanos de se entregarem ao celibato. O facto de o ser humano tender para a chacina não significa que ele não possa praticar a paz ou reconhecer o carácter inalienável da dignidade humana.

A doença dos governantes: vírus governante ou lobotomia?

Oh, lecas, tu queres lá ver que...

Que nome daríamos a alguém que insiste em fazer o mesmo caminho esperando alcançar diferentes destinos?

Que nome daríamos a quem faz repetidamente coisas mesmas jurando, a cada vez, que irá obter resultados diferentes?

Nas séries CSI vemos que os investigadores tentam reproduzir acontecimentos para determinarem os resultados dos acontecimentos que investigam. Num episódio um polícia atirou um botão de um casaco ao chão, no mesmo local onde um suspeito teria perdido o seu, com o intuito de encontrar o botão que o suspeito perdera. Ora, aqui está: toda a ciência, na verdade todo o conhecimento só existe, só pode existir, só tem condições de validade se assumirmos a regularidade das coisas. Se X produz Y, sempre que eu fizer X, produz-se Y. Este pensamento tem dado frutos: prédios, estradas, televisões, computadores, relógios, etc....

Mas a economia não é uma ciência rígida. Tem muitas variáveis e lida com probabilidades. Muitos eventos económicos são incertos.

Conquanto tal incerteza, alguém espera que a austeridade provoque por si mesma a emancipação de uma economia. Sinceramente: alguém imagina que a subtracção constante origine suplemento?

Se percorremos o caminho da Grécia, como poderemos pensar que não nos estamos a dirigir para o mesmo fim?

É um erro pensar que a austeridade leva a prosperidade. Pode ser necessário rigor, alguma estabilização do exagero da dívida ou do défice. Mas jamais a austeridade levará à prosperidade. É uma simples questão de lógica. É preciso algo mais, outra coisa além da austeridade.

Enfim, o PSD na oposição afirmava que o PS não deveria apenas apostar no mais fácil, nos cortes de ordenados/aumento de impostos ou nos despedimentos. Na oposição, o PSD falava de cortes estruturais, de medidas sistémicas. Agora, no Governo, segue o caminho mais fácil: aumenta impostos, corta nos ordenados, despede trabalhadores. Cortes verdadeiramente estruturais e medidas sistémicas significativas não se vêm.

Parece que quando uma pessoa entra para o Governo é imediatamente assolada por uma espécie de estupidez endémica aos cargos governativos. É o vírus governante: não sei se é bem parvoíce, estupidez ou pusilanimidade. Uma pessoa enquanto fora do governo pode revelar boas intenções, boas ideias, boas acções, boas práticas profissionais, empenho e raciocínio extremosos - a mesma pessoa no governo parece ter sofrido uma lobotomia (em que a parte do cérebro destinada às virtudes foi compulsivamente seccionada).

Miguel Macedo abdica do subsídio de alojamento

Oh, lecas, tu queres lá ver que...

As ajudas ao arrendamento são uma coisa interessante. Um professor que viva na Grande Lisboa e seja colocado no Algarve a dar aulas, não tem direito a elas. Terá de custear, do seu bolso, o arrendamento de uma casa para poder trabalhar. Mas um Ministro tem direito a uma ajuda se for para o Governo em Lisboa e a sua primeira casa for no Algarve. Porquê?

Com toda a certeza porque os Ministros ganham pouco, são uma classe desfavorecida, por isso necessitam de ajuda por parte do Estado - o qual "tutelam". O que lhes vale, aos políticos em geral, é serem eles a decidirem dos seus próprios ordenados. O que é uma incumbência muito ingrata. Imagine-se que era cada um de nós a mandar nos ordenados de cada um. Seria uma balbúrdia, cada um a pedir para si. O que nos vale é os Políticos serem gente séria, se não fosse esse o caso poderiam estabelecer para si próprios pensões vitalícias e outras coisas parvas.

Mas os Ministros, 'tadinhos', são gente séria, ainda por cima desmesuradamente desfavorecida, como podemos perceber pelo facto de nem lhes ser garantida a existência de um Sindicato. Ainda bem que, ao menos, podem receber subsídios de deslocação, pois são forçados a trabalhar em Lisboa. Os seus ordenados baixíssimos seriam completamente dizimados se não fossem esses subsídios que a classe política, sagazmente, previu.

Finalmente, temos de reconhecer a magnanimidade dos políticos, como esses governantes que agora abdicam de receber ajuda do Estado para arrendarem casa em Lisboa. Eles que até têm de arcar com gastos de várias casas que possuem, não só na sua terra de origem, mas também em Lisboa (e não só...). Mas apesar de terem estes flagrantes gastos desmedidos com várias casas, ainda abdicam de receber a tão justa e legítima ajuda a que os Ministros, nestas circunstâncias, têm direito.

Visto que os Ministros são uma classe flagelada, é de admirar que ainda haja quem queira ser Ministro. Talvez queiram ser Ministros apenas por amor à Pátria.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O caso Isaltino Morais

Oh, lecas, tu queres lá ver que...

O caso Isaltino Morais suscitou-nos algumas considerações a fazer. Antes de mais, uma declaração de princípio: não se deve assumir a culpa antes de que uma sentença de culpabilidade tenha transitado em julgado. Assim, não assumimos aqui a culpa do Sr.º Isaltino Morais. Também aceitamos que a Justiça institucional possa incorrer em erros de julgamento. Assim, assumimos que, mesmo que a Justiça tenha dado como culpado um determinado réu, e a sentença tenha transitado em julgado, este possa ser inocente.

Dito isto, reservamo-nos o direito de discorrer academicamente, isto é, de forma abstracta, referindo-nos a uma generalização. Assim, vamos proceder a uma crítica geral, independentemente do Sr.º Isaltino Morais ser, ou não, de facto culpado.

Pelo que se percebe, é possível que se tenham pronunciado todas as instâncias de recurso, incluindo o Tribunal Constitucional, reafirmando sempre a culpa do réu, e ainda assim ocorrer a prescrição do crime. À partida pareceria que, se houve tempo da última instância se pronunciar, então o crime ainda não prescrevera (podendo apenas prescrever a punição se o Estado não a executar em tempo útil). Contudo, parece ser possível que a última instância de recurso tenha confirmado a sentença, e ainda assim ocorra prescrição do crime.
O que depreendemos do caso Isaltino Morais é que: pode perfeitamente acontecer que um réu seja, de facto, culpado, que seja dado como culpado pela Justiça, desde a primeira instância até às restantes instâncias de recurso, e no final seja libertado, não devido a um qualquer erro de julgamento (pois os tribunais deram-no como culpado), mas apenas porque o crime prescreveu antes de terminado todo o processo. (Não vamos aqui debater se se deve dizer que é o crime ou o processo que prescreve - assumimos aqui que um processo se extingue por prescrição do crime que suscitou o mesmo, considerando como prescrição o decurso total de um período de tempo definido - prazo - sobre a prática dos actos previamente criminalizados.)

Este parece-nos ser o ponto importante: pode perfeitamente acontecer que um culpado seja dado como culpado e ainda assim ser libertado, simplesmente porque o processo, até transito em julgado e aplicação da pena, não terminou em tempo útil. Como pode tal acontecer - que mesmo quando a Justiça acerta, se chegue a um resultado contrário ao que seria, por assim dizer, justo?

Parece-nos que o problema está num excesso de garantias - num garantismo que o nosso sistema continua a manter.

Não penso que se deva terminar com as garantias de defesa justas, nem com as garantias de revisão de uma sentença potencialmente errada. O sistema deve precaver-se daquelas que são as suas falhas previsíveis. É salutar que um sistema contemple a possibilidade de corrigir os seus próprios erros. Contudo, se o sistema assume que pode errar, então quando deve terminar a possibilidade de revisibilidade? Quantas revisões devem ser possíveis?

Penso que o sistema deve dar garantias aos cidadãos de que o próprio sistema tem a possibilidade de rever potenciais erros. Concedo que o réu deve poder continuar em liberdade até que a sentença transite em julgado, pois só aí se esgotam todas as possibilidades de corrigir os erros que o próprio sistema prevê. Mas penso que o sistema não deve cair no erro de permitir uma revisibilidade contínua de tal modo que o próprio tempo que esta decorre torne possível que o criminoso se salve pela própria delonga do processo.

Como corrigir a situação? Em abstracto poderíamos sugerir que a Justiça se deve tornar mais célere. Os agentes da Justiça devem estar cientes que devem proceder ao julgamento na primeira instância de modo a que seja possível que o advogado de defesa recorra a todas as suas garantias, sem esgotar o período de tempo após o qual o crime prescreve. Por outro lado, talvez devesse admitir-se que algumas garantias são excessivas. É provável que seja justo delimitar ou definir as condições de acesso a algumas dessas revisões, momeadamente no que diz respeito ao decurso do próprio julgamento em primeira instância. Logo na primeira instância, o advogado de defesa pode interpor tanta objecção, pode solicitar tanta revisão, ou seja, pode requerer tantos recursos que esse julgamento se prolonga de forma indefinida. O caso Casa Pia tornou este facto evidente.

Todavia, deixo as sugestões anteriores de lado, pois a primeira é sobretudo técnica e administrativa (burocrática), e a segunda é sobretudo decorrente da multiplicação dos meios de prova, do número de réus e de vítimas que alguns julgamentos aglomeram - ou seja, não é certo que essas sugestões, apesar de praticamente visarem efeitos positivos, sejam executáveis ou justas de uma forma abstrata. Por exemplo, não é óbvio que se deva eliminar uma garantia (a qual é, de certa forma, um direito) com a justificação de que essa eliminação é necessária para garantir outro direito (o direito da restante sociedade de se livrar dos prevaricadores). Também não é óbvio que, mesmo eliminando algumas dessas garantias, não possa continuar a acontecer que certos julgamentos sejam tão extensos que, durante o seu longo decurso, seja possível levantar ums série imensa de objecções. Finalmente, não é claro que a necessidade de tornar os julgamentos rápidos justifique a eliminação de garantias que, precisamente porque foram consideradas justas, estão instituídas.

Por outro lado, poder-se-ia considerar que o período findo o qual o crime prescreve devesse ser contado até ao início do processo/procedimento criminal. É isto que defendemos.

O princípio que justifica a precrição dos crimes roga que ninguém deve ser sujeito, indefinidamente, à incerteza de vir ou não a ser condenado pela sua acção. Assume-se que, no tempo de vida, um ser humano pode, de facto, nudar. Seria injusto que um ser humano que mudou a sua vida e a sua própria concepção do mundo, tivesse que viver com o medo constante de vir a ser condenado por algo que fez, não só há muito tempo, mas sobretudo quando era (por assim dizer) outra pessoa. Trata-se de um problema filosófico, mas também moral e ético: saber se a responsabilidade (criminal, ética ou deontológica) de um agente face aos seus actos se extingue, e da correlação entre a resposta a esta questão, e a consideração dos efeitos no tempo (sobre a sociedade, o prevaricador e a vítima) da assumpção de uma tal extinção. Consideraríamos justo penalizar o nosso filho, que tem hoje 40 anos, por uma má acção que ele praticou quando tinha 5 anos?

Se considerarmos a questão em causa verificamos que a nossa atenção se prende de imediato na idade da pessoa quando praticou o acto. Dito de outra forma, contam as atenuantes que estavam em causa (grau de inimputabilidade, circunstâncias que motivaram o acto, etc.), como em qualquer outro julgamento. Um menor tem desculpa. No entanto, note-se, que se tivessemos sabido o que ele fez na altura que o fez, talves o tivessemos castigado de alguma forma: para o educar, diríamos. Portanto, assumimos tacitamente a justeza da prescrição da punição: se tivessemos sabido o que o nosso filho fez na altura em que o fez castigávamo-lo, mas agora a punição parece despropositada. Porquê?

Bem, porque agora ele é adulto, diríamos. Ou seja, num segundo momento percebemos que o que nos move para a aceitação da prescrição da punição são as actuais características da pessoa. Da mesma forma, desculpamos muitas coisas quando alguém, de algum modo, nos recompensou pelo mal que nos fez. Aceitamos que, se apesar de ter cometido algumas faltas, uma pessoa pode ser desculpada se, de uma forma ou de outra, recompensou a sociedade - enfim, fez mais bem do que mal, apesar daquela falha. Note-se que, neste caso, tenderíamos a aceitar a extinção da responsabilidade. Ou seja, aceitamos a "prescrição", não só da punição, mas da responsabilidade do agente (o que, no dia-a-dia significa que desculpámos uma pessoa).

Finalmente diríamos que depende daquilo que ele tivesse feito. Independentemente da pessoa que ele era (fosse ou não imputável, tivesse 5 ou 18 anos), independentemente da pessoa em que se tornou (tenha ou não recompensado a pessoa contra quem cometeu a falta, tenha ou não recompensado a sociedade, tenha ou não modificado a sua forma de ser), também fazemos depender a nossa resposta do tipo de acção praticada. Ou seja, para a prescrição é determinante saber que tipo de crime foi cometido. Em alguns países o genocídio nunca prescreve, noutros nunca prescreve o de homicídio, ou algumas das suas formas, etc. Em Filosofia do Direito é fundamental a noção de "distinção entre bem e mal". Não nos interessa apenas saber se uma pessoa distingue o bem do mal (para existir responsabilidade, parece ser necessário que o agente saiba que está a praticar um acto mau e as suas consequências) - interessa-nos também saber o "grau de maldade" do acto. Há actos por natureza mais condenáveis que outros, e/ou actos mais lesivos do que outros. Matar um ser humano é diferente de lhe furtar a carteira.

Destarte, percebemos que as consequências do acto são, também, fundamentais para a determinação da prescrição. A ponderação da gravidade do acto, bem como das suas consequências lesivas, delimitará um conjunto de castigos aplicáveis, ou dito de outra forma, uma pena que se concretizará um certo intervalo de tempo de cadeia, por exemplo. Portanto, assume-se que a prescrição está devedora do tipo de pena a aplicar, em razão desta substanciar uma gravidade e uma ofensibilidade própria. Quantos mais anos de cadeia um crime puder "atribuir", mais tempo é necessário decorrer até que ele prescreva.

Apesar disto, os sistemas legislativos não devedores da tradição romana deram origem a sistemas criminais regidos por ordenamentos juríco-penais que não aceitam a prescritibilidade. Dito de outra forma, nestes sistemas o agente pode ser chamado a responder criminalmente em qualquer momento após a prática dos actos que consubstanciam um crime. Os crimes (ou a responsabilidade criminal) nunca prescrevem. De facto, os tribunais criminais supra-nacionais, por força da natureza dos crimes sobre os quais julgam, assumem a imprescritibilidade como regra. O facto de alguns países de ordenamento romano poderem estar sob acção de um tribunal criminal supra-nacional que não aceita a precritibilidade, revela a possibilidade de conflitos. Portugal, por exemplo, não coloca nenhum impedimento à precritibilidade, de modo que qualquer crime pode precrever, em função da gravidade e natureza do mesmo.

Concluindo, parece-nos que a prescritibilidade é uma garantia defensável, por forma a permitir que o Estado se auto-limite, na medida em que seja previsível que, por razões de tempo decorrido, se torne injustificável a aplicação de uma punição, por se tornar como já dissemos, inútil. A inutilidade decorre dos efeitos da sua aplicação quando decorreu um tempo bastante longo, desde que ocorrido o acto. Assim, a distância temporal compromete as funções de justiça, pois é previsível que a aplicação da pena deixe de ser justa, dadas as mudanças potencialmente ocorridas, quer na vítima, quer no prevaricador, ou mesmo na sociedade. A distância temporal compromete também a razão de segurança, ou seja, a segurança resultaria da punição após o crime, evitando a continuidade da acção prevaricadora e transmitindo a noção de penalização a outros potenciais prevaricadores - contudo esta função deixa de ser eficaz com o passar do tempo (de resto, se um prevaricador esteve 30 anos solto e não continuou a matar, não é óbvio que seja preciso, agora, proteger a sociedade desse assassino circunstancial). Assim, também a função de reeducação do prevaricador parece desfasada: a psicologia tem mostrado de forma clara que, para existir um efeito educador, é necessário que a punição ocorra tão próxima do acto quanto possível. Finalmente, o passar do tempo elide provas, de modo que as técnicas de investigação tenderão a resultar em conclusões cada vez mais erróneas (potencialmente equivocadas, dada a deturpação dos indícios, dos ambientes e mesmo das memórias).

Na nossa opinião a prescrição, de acordo com os princípios que a justificam e que tentei esclarecer é justificável de forma geral. Deve existir prescrição (da responsabilidade, ou até, especificamente, da punição, se o Estado não se decidir a executar uma sentença em tempo útil). Por princípio, não é justo que uma potencial condenação pese para sempre sobre uma pessoa (pelas razões que expliquei). Contudo, nada no princípio da prescrição (a inutilidade dos efeitos da punição) invalida que o tempo para a mesma seja contado até ao início do processo, ou até à sentença da primeira instância. Assim, desde que a iniciativa processual, ou como se queira chamar ao início do processo, tenha ocorrido dentro do prazo, poderia ser atribuída responsabilidade criminal. Após a sentença de primeira instância, o Estado teria um prazo para a executar, mas este prazo deveria ser estipulado tendo em conta todos os prazos de recurso possíveis. Isto implicaria que também as instâncias de decisão se tivessem que pronunciar dentro de prazos estipulados - o que não parece ser o caso, pelo menos para o Tribunal Constitucional. Assim, não seria possível existir prescrição devido às garantias oferecidas. A existir prescrição, dever-se-ia a demoras não regulares na tomada de decisão por um orgão decisor, o que, então, deveria implicar a determinação da responsabilidade do magistrado ou magistrados que não respeitaram o prazo estipulado.

Refira-se ainda que, em alguns países (cf. Itália), uma sentença pode ser executada antes de todas as instâncias de recurso se pronunciarem. Na lógica dos princípios, isto poderá ser injustificável, na medida em que se está a punir alguém que o próprio sistema ainda admite não culpar.